quinta-feira, 31 de julho de 2014

A tragédia de Clipperton

A Ilha Clipperton é um pequeno atol coralino situado no Oceano Pacífico, a 1.300 quilômetros a sudoeste de Acapulco, na costa mexicana. É uma ilhota completamente isolada; a terra mais próxima está a quase mil quilômetros dali (trata-se da Ilha Socorro). Com apenas 9 quilômetros quadrados de superfície, incluindo a lagoa no interior, é um pedaço de terra com quase nenhum tipo de interesse e completamente desabitada. 

A soberania sobre o atol é ostentada pela França, fazendo parte das posses francesas de além-mar. Mas a ilha nem sempre foi francesa e também não esteve sempre desabitada. Há cem anos, foi palco de uma tragédia digna de um drama de Shakespeare. Esta é sua história.

A ilha foi descoberta a princípios do século 18 por John Clipperton, pirata e corsário inglês que se dedicou, entre outras coisas, a atacar posses e navios espanhóis em nome de sua majestade britânica. Enquanto não existe evidência documental, afirma-se que utilizou a ilha como base para suas expedições de rapina. 

Localização de Clipperton no Oceano Pacífico. 
A lenda diz que enterrou parte de seus ganhos na ilha. Em 1711, dois barcos franceses chegaram ao atol e o batizaram com o nome de Ilha da Paixão. Algo de errado deve haver com os franceses para denominar assim a uma ilha cujo único atrativo era e é o guano.

Durante o século 19, Estados Unidos, França e México disputaram a soberania sobre a minúscula ilhota. Finalmente em 1909 França e México chegaram a um acordo:

Se submeteriam à arbitragem de Victor Manuel III, à época rei da Itália. O problema foi que a decisão demorou 22 anos para chegar.
Previamente ao acordo franco-mexicano, o governo do México havia alcançado um acordo com a Pacific Island Company para a exploração do guano da ilha. Era 1906, e Clipperton viveria alguns breves anos de algo parecido à prosperidade que culminariam em uma horrível tragédia.


A companhia britânica, junto do governo de Porfirio Díaz, procedeu à construção de um assentamento mineiro, com barracões, uma pequena ferrovia, um farol. Mineiros italianos e chineses foram trazidos de San Francisco. 

Farol de Clipperton
O México também enviou um pequeno destacamento militar, sob o comando de Ramón Arnaud, primeiro (e único) governador de Clipperton, título que ostentaria durante 10 anos, entre 1906 e sua morte em 1916. Durante esse tempo, foi casado com Alicia Rovira.

Entre 1906 e 1914 a população da ilha se manteve em torno de 100 habitantes entre mineiros, engenheiros, militares e suas famílias (mulheres e crianças incluídas). Em 1908 a Pacific Island Company cessou suas operações na ilha, ao encontrar-se em bancarrota e ao não poder dar saída ao guano de baixa qualidade de Clipperton.

Ficaram os homens do destacamento militar, para reafirmar a soberania mexicana na ilha, e mineiros sem local para onde regressar e nem ninguém que levassem eles embora. Os víveres e demais recursos, incluindo a água potável, chegavam a cada dois meses com um barco procedente de Acapulco.

É fácil imaginar o que aconteceria à uma comunidade isolada muito além do normal e de apenas cem pessoas, a mercê da chegada de um navio com o necessário para seguirem vivos.

Em 1910 estourou a Revolução Mexicana, da qual, em Clipperton apenas chegaram a ter informações até janeiro de 1914, quando o barco de Acapulco deixou de chegar. Foi afundado pelos revolucionários mexicanos em frente à costa de Mazatlan.

Ramón Arnaud
Pouco depois uma escuna norte-americana encalhou no local. Ante as notícias que os marinheiros americanos trouxeram do México, três oficiais mexicanos se lançaram em um bote rumo a Acapulco, aonde chegaram semanas depois.

No entanto, as novas autoridades mexicanas se recusaram a resgatar a um declarado partidário do regime anterior. O escorbuto e a fome devoraram os habitantes e quando a marinha norte-americana enviou um barco de resgate, em junho de 1915, restavam apenas 24 pessoas na ilha, 14 homens, seis mulheres e seis crianças, que sobreviviam à base de leite de coco e peixe.

Os americanos resgataram os seus e ofereceram a Ramón Arnaud, o transporte até Acapulco para toda a guarnição, mas o capitão se negou. No passado, ele havia sido avaliado e condenado por deserção, e talvez temesse ser acusado novamente. Essa decisão foi sua sentença de morte. Sua e de quase todos os demais.

Durante o seguinte ano, a maioria da população faleceu de fome e escorbuto. É difícil imaginar as condições físicas e principalmente mentais da escassa população da ilha.
Isolados, sem provisões e sem esperança, ficando loucos à cada minuto. O Capitão Arnaud e mais quatro homens morreram afogados ao afundar a precária balsa em que pretendiam alcançar um barco que lhes resgatasse.

Alicia Rovira, esposa de Arnaud à esquerda
Em 1917 na ilha estavam um homem (o faroleiro), oito mulheres e sete crianças.

O faroleiro, um homem chamado Victoriano Álvarez, terminou enlouquecendo (como já havia acontecido com outros homens na ilha antes dele), e depois de se proclamar Rei de Clipperton procedeu uma série de estupros e assassinatos que acabou com a vida de quatro mulheres.

A quinta na lista era a viúva de Arnaud, Alicia Rovira, quando começou a receber as atenções do faroleiro ela simplesmente o matou. Muito pouco tempo depois um navio de guerra dos EUA passou pela ilha e resgatou aos 11 sobreviventes, quatro mulheres e sete crianças.

Em 1931 o rei Victor Manuel da Itália acatou as ordens de Mussolini e outorgou-lhe a soberania sobre a ilha à França. México levava catorze anos sem pôr um pé ali e portanto, não houve disputas, embora na atualidade ainda se pode escutar vozes reclamando a soberania sobre o atol. Em 1934 a "Ilha da Paixão" foi apagada da Constituição Mexicana. França reconstruiu o farol e mandou um pequeno destacamento militar à ilha, que foi desmantelado em 1944.

Os sobreviventes de Clipperton, em 1917


A marinha dos EUA ocupou o lugar secretamente em 1945 e quando acabou a Segunda Guerra Mundial, voltaram a abandoná-la. Desde então apenas breves expedições científicas ou de radioamadoristas se aproximam dali. Jaques Costeau, o mítico pesquisador e divulgador marinho, visitou a ilha em 1978 junto de um sobrevivente para rodar um documentário.

E alguns náufragos passaram ali duas ou três semanas até serem resgatados e nada mais. A Ilha Clipperton foi engolida pelo tempo e pelo mar, esquecida pela História até que em 2005 a escritora colombiana Laura Restrepo publicou uma novela sobre a ilha.